O ex-juiz Sérgio Moro, aquele que se diz apenas um técnico, não um político, tem tudo para calcinar a sua biografia mesmo aos olhos dos seus hagiógrafos, daqueles dispostos a ver na sua trajetória as virtudes dos santos, não as circunstâncias dos homens, sempre falíveis, alguns mais do que outros, especialmente quando, na condição de juízes, enxergam mais a pessoa do que a causa julgada, fazendo com que a balança do equilíbrio penda para o lado. Ele resolveu se manifestar sobre as movimentações financeiras de Fabrício Queiroz, ex-motorista de Flávio Bolsonaro. Vamos ver.


Vamos começar pela coisa errada. Sobre a justificativa de Jair Bolsonaro, presidente eleito, para a transferência de R$ 24 mil que Queiroz fez para a conta de Michelle Bolsonaro, futura primeira-dama, afirmou o ex-juiz:

“Sobre o relatório do Coaf sobre movimentação financeira atípica do sr. Queiroz, o sr. presidente eleito já esclareceu a parte que lhe cabe no episódio. O restante dos fatos deve ser esclarecido pelas demais pessoas envolvidas, especialmente o ex-assessor, ou por apuração.”
Como? Digamos que o “sr. presidente” já apresentou uma explicação, não um esclarecimento, não é mesmo? Até porque, da forma como a coisa foi dita, é impossível saber se “sim” ou se “não”, para ficar na expressão do próprio Bolsonaro.


Curioso esse Sérgio Moro. Lembram-se do apartamento contíguo àquele em que mora Lula, em São Bernardo? Há a denúncia de que o imóvel pertença ao ex-presidente e seja também fruto de propina, e sua posse supostamente em nome de terceiros caracterizaria lavagem de dinheiro. O imóvel tem um proprietário, com escritura devidamente lavrada. Há e-mails do dito-cujo cobrando aluguel. Lula afirmou que pagava os alugueis. Mesmo assim, Moro exigiu que se apresentassem os recibos. Observem: no caso em tela, não se tratava de verificar provas de que o apartamento era fruto de propina, que deveriam ter sido apresentadas pelo Ministério Público Federal. O juiz cobrou do petista as chamadas provas negativas: “Prove que você não é dono, como dizem, apresentando os recibos”.

Agora, na condição de ministro nomeado da Justiça, o doutor chama de “esclarecimento” a justificativa apresentada por Bolsonaro, vazada só no dia seguinte à divulgação da estranha movimentação de Queiroz, sem que pessoas ligadas ao caso, como Flávio Bolsonaro, chefe de motorista, e este próprio, o tenham feito. Convenham: num caso invulgar como esse, seria fácil dar a explicação de primeira. Num empréstimo que não tem registro do Imposto de Renda, fica tudo por isso mesmo. “Como é, Reinaldo? Está exigindo de Bolsonaro provas negativas? Está exigindo que Bolsonaro prove ser inocente?” Não, queridos! Estou dizendo que Sérgio Moro pode cobrar provas negativas quando considera conveniente e dar por satisfatórias explicações que, dado o contexto, são, para dizer pouco, insuficientes, não é mesmo?

Aí diz o ex-juiz: “O restante dos fatos deve ser esclarecido pelas demais pessoas envolvidas, especialmente o ex-assessor, ou por apuração.”
Acho que o juiz quis dizer “e”, não “ou”. Da forma como saiu a frase, sugere-se que bastará, então, um esclarecimento dos envolvidos, e a investigação está dispensada. Suponho que os ditos-cujos não vão se incriminar logo à primeira abordagem caso tenham feito algo de irregular. O esclarecimento que lhes deve ser cobrado integra a investigação, que tem de ir além da declaração. Ou estou errado? O silêncio de Moro sobre o assunto era inusual. Quando falou, a emenda saiu pior do que o soneto. Mas Moro continua topetudo.
Afirmou sobre o caso:
“Vou colocar uma coisa bem simples. Fui nomeado para ministro da Justiça. Não cabe a mim dar explicações sobre isso. Eu acho que o que existia no passado de um ministro da Justiça opinar sobre casos concretos é inapropriado.”
Fiquei curioso. A que ministro da Justiça, em particular, ele se refere? O caso do petroão foi desvendado na gestão petista e calcinou o PT e o governo Dilma. Até onde se sabe, cobrou-se, sim, de José Eduardo Cardozo que “desse um jeito na PF”, e jeito, como se viu, não houve, certo?
Já o impoluto Moro nem assumiu e já acrescentou a sua biografia uma defesa do ministro Onyx Lorenzoni sem nem ter, ate onde se sabe, ciência do caso concreto: refiro-me à delação da JBS que o compromete com outra doação irregular de R$ 100 mil além daquela outra, de igual valor, já admitida pelo futuro ministro. Por essa, ele se desculpou, o que enterneceu o coração de Moro. Mais do que isso: expressou sua confiança pessoal no futuro colega do Ministério e observou que ele tem o benefício de ter defendido as Dez Medidas Contra a Corrupção, quatro delas fascistoides, como não cansarei de lembrar: virtual fim do habeas corpus, ampliação tirânica das possibilidades de prisão preventiva, validação de provas colhidas ilegalmente, teste de honestidade que induzia ao crime.
Parece-me que Sérgio Moro deu um jeito de interferir no caso antes mesmo de ser ministro. Vamos ver como se comporta depois.
De resto, cumpre concluir: se Moro tivesse adotado com Lula o padrão que já adotou com Jair Bolsonaro, o ex-presidente estaria andando por aí, sem processo. Ao petista teria bastado dizer: “Não fiz nada, e inexiste ato de ofício”. Ao que o então juiz emendaria:
“O sr. presidente eleito já esclareceu a parte que lhe cabe no episódio. O restante dos fatos deve ser esclarecido pelas demais pessoas envolvidas, especialmente o ex-assessor, ou por apuração.”
E Lula estaria solto e sem processo, quem sabe sendo diplomado hoje.
Nessas coisas, não é?, só resta às pessoas decentes da minha profissão exercer o jornalismo sem partido.

Por:  Blog Reinaldo Azevedo-