É preciso regular as redes sociais e as empresas de marketing digital


Seguindo as reflexões das duas últimas colunas, quero falar sobre os perigos do aproveitamento de pautas sociais a partir de um caso concreto.

Numa edição do Big Brother Brasil, um participante disse que era incorreto se referir à população negra como "negro" ou "negra", que o correto seria dizer "preto" ou "preta". Esse participante, hoje influenciador, passou essa informação sem a mínima responsabilidade, e centenas de outros passaram a replicar nas redes sociais levando uma série de pessoas a erro.

Isso é irresponsável por vários motivos: há toda uma tradição de estudos a respeito do tema e, além disso, o movimento negro brasileiro definiu a categoria negro como a soma de pardos (negros claros) e pretos (negros retintos). Assim também está definido no Estatuto da Igualdade Racial.

A ilustração tem um fundo com listras e ao centro há um televisor de tubo e em seu visor listras coloridas com uma paleta baseada em tons de pele.
Ilustração de Aline Bispo para coluna de Djamila Ribeiro de 12 de janeiro de 2024 - Folhapress

Por causa disso, muitas pessoas pardas passaram a se declarar pretas, o que pode ter ocasionado uma apuração equivocada pelo censo do IBGE, algo alertado diversas vezes pela intelectual Carla Akotirene, que, por sua vez, sofreu vários ataques por pautar o que era correto.

Desde essa edição do programa, páginas de conteúdo voltado à população negra passaram a postar sobre BBB todos os dias sem informar seus seguidores do porquê dessa mudança radical. De repente, em vez de se postar sobre temas relevantes para a população negra, essas páginas viraram uma espécie de relações públicas do programa, sem publicizar qual acordo foi feito, se estavam recebendo por isso.

O mesmo aconteceu com algumas figuras negras com algum alcance: pessoas que criticavam o programa com veemência se tornaram comentaristas diárias sem o cuidado de comunicar a quem os segue o porquê disso. O que, mais uma vez, nos leva a crer que há acordos não ditos. Pessoas ligadas a organizações sociais também passaram a comentar e a usar a palavra "preto" sem o mínimo respeito à história do movimento negro. O silêncio e a omissão de ativistas foram gritantes.

Um verdadeiro acinte, pois não faz sentido permitir que uma grande corporação paute as demandas da população negra brasileira, em vez de se respeitar os acordos coletivos construídos com muita luta.

Pessoas com mandatos e ligadas à política institucional também fazem as vezes de relações públicas do programa e eu pergunto: onde fica a impessoalidade da administração pública? Em vez de pautarem a democratização da mídia, estão legitimando o monopólio midiático? Isso seria do interesse da população brasileira, a quem eles representam?

É grave que um programa na maior emissora do país paute temas referentes à população negra com a conivência de influenciadores, muitos agenciados por empresas de marketing digital. São desserviços como esse que facilitam a vida de pessoas desonestas intelectualmente para argumentar que raça é fraude no país —último das Américas a abolir a escravidão e que tem obrigação de reparar desigualdades históricas baseadas em raça.

O Brasil não é os Estados Unidos e aqui ainda é importante que falemos sobre colorismo, e como há diferença de tratamentos entre pessoas negras claras e negras escuras. Não se trata de dividir a população negra, nem de dizer que pardos não sofrem racismo. Sofrem, claro, são negros, mas é importante, a partir de dados objetivos —pois é assim que se cria demandas de políticas públicas— que tenhamos informações sobre a realidade concreta de pessoas pardas e pretas para que consigamos formular saídas emancipatórias e pensar as relações de desigualdade intragrupo.

Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

Fonte:FSP